Casamento em cemitério tem coveiro surpreso, enterro na mesma hora e segurança achando que era pegadinha

Cerimônia que uniu Healing e Heryck no Cemitério da Saudade, em Sumaré (SP), teve atabaque, danças e muito preto e vermelho.

“Como coveiro, eu já vi muita história. Casamento, é a primeira vez”. A surpresa de Jocilei Robson França, de 50 anos, é explicada por conta de uma cerimônia pouco convencional, em que o casal Healing e Heryck reuniu amigos e parentes para celebrar a união entre lápides no Cemitério da Saudade, em Sumaré (SP).

A cerimônia que seguiu a vontade dos noivos e os preceitos da religião que praticam – a noiva e o filho comandam um terreiro em Hortolândia -, teve muito atabaque, cantos e dança, em um cenário que privilegiou o vermelho e preto, inclusive dos convidados.

A cena chamou atenção de quem passava por perto. Ao mesmo tempo em que o casal celebrava sua união, em uma reza conduzida pelo filho da noiva, uma família enterrava seu ente a poucos metros.

“O pessoal pergunta. Estava acabando de fazer um sepultamento, dá uma estranhada por causa do ritual, das músicas, não é do conhecimento [de todo mundo]. A gente fala que é um casamento. Alguns concordam, outros não. O pessoal ali mesmo é evangélico, deu uma estranhada na situação”, relatou Jocilei, que há 15 anos trabalha no local.

E a surpresa com o casório no cemitério também foi grande para o vigilante Richard Anderson de Oliveira, de 34 anos. Contratado para trabalhar na cerimônia, revelou que, num primeiro momento, pensou se tratar de “uma pegadinha”.

“Já trabalhei em muitos eventos, até futebol e casamento, mas casamento em cemitério é completamente diferente. A princípio achei que era pegadinha, fui pesquisar a noiva nas redes sociais, daí vi que era sério”, explica.

Richard estava no local por conta da possibilidade da presença de curiosos.

O altar montado entre lápides, e com as imagens das entidades que comandam o terreiro da mãe de santo Healing, foi cercado para garantir que apenas os convidados estivessem próximo, mas não havia qualquer impedimento para quem quisesse acompanhar.

E pensar que durante toda a manhã de domingo (3), embora com o céu coberto de nuvens carregadas de chuva, que já havia deixado o terreno molhado pelo dia anterior, nenhuma gota caiu e a cerimônia ocorreu sem problemas.

“Tem que ter macumba até no dia do casamento”, disse, rindo, Healing, garantindo que fez o trabalho que manteve o tempo seco durante a cerimônia.

Após o “sim” no altar, com direito a votos, um brinde entre os noivos, muito canto e dança ao som do atabaque, a mãe de santo valorizou a festa, feita de improviso – a ideia surgiu na quarta, e o casamento ocorreu no domingo cedo.

“Em três dias o que a gente fez. Foi meio atrapalhado, mas o importante é o axé, alegria. Eu sou uma pessoa de muita simplicidade, queria um lugar para colocar as imagens [Rosa Caveira e Exu Caveira], senti muito a presença deles. A gente foi muito criticado, mas a gente não tá faltando com respeito. É o ponto de força das minhas entidades, aqui estão meus amigos”, disse.

O noivo Heryck reforçou a explicação sobre o motivo da escolha do cemitério para a união do casal. “Quando a gente tá preocupado, estressado, vem para cá se acalmar, pedir ajudar, agradecer. É aquilo, para muito cemitério é praça linda, mas ninguém quer passear”, diz.

Pai de santo e filho de Healing, Jhefrey, de 19 anos, deixou transparecer a emoção durante a cerimônia.

“É uma grande honra, hoje é um dia que me alegro muito de poder casar minha mãe e minha mãe de santo. Ela é minha melhor amiga. Me sinto privilegiado”.

O preto e o vermelho deram o tom da cerimônia, principalmente no vestuário dos noivos. No altar, as imagens de Rosa e Exu Caveira, entidades que regem o terreiro Rosa Caveira e Maria Padilha, que o casal comanda em Hortolândia (SP).

“São os nossos guardiões. O ponto de força, que é o cemitério, é o ponto deles, né? Na nossa religião, isso é muito importante. Eu tenho a mania de dizer assim: quando eu tô me sentindo morta, eu vou no cemitério pra me sentir viva. Porque ali é onde eu sinto a força da minha entidade de frente, né?”, explica Healing.

Quem comandou a cerimônia cercada por lápides foi Jhefrey, de 19 anos, filho de Healing, e pai de santo do terreiro. O jovem até seguiu o roteiro que havia preparado, mas deixou a emoção aflorar em muitos momentos.

Em cerca de 15 minutos, sempre acompanhados pelo som do atabaque e cantos, Heryck, de 36 anos, e Healing, trocaram os votos e formalizaram a união na religião que seguem – o casamento civil está marcado para dia 13.

Durante a cerimônia, o casal enfatizou o termo “umbanda independente” para explicar a linha de trabalho do terreiro que eles comandam, e para justificar a escolha pelo cemitério, as cores e tudo mais que acompanhou o casamento.

“A diferença que eu coloco é porque a maioria das pessoas que casam na umbanda eles procuram casar de branco, em cachoeira e tal, né? E dentro de mim tinha essa vontade de casar de preto e dentro do cemitério, porque como eu sou filha de Rosa Caveira, então a minha essência é muito esse lado”, disse a noiva.

Healing, que também marca presença nas redes sociais como “rainha da feitiçaria”, conta que sempre mexeu com magia, e que costuma compartilhar o dia a dia de uma mãe de santo e também ensinar magias aos seguidores, além de captar contatos para trabalhos espiratuais.

“O que viraliza mesmo são os ensinamentos de simpatia. Eles gostam muito disso. Aí através disso vem pedido de trabalho. Porque tem gente que tem medo de mexer com a espiritualidade. Então eles vem e chamam no particular, e pedem por esses trabalhos. [Em sua maioria] trabalhos amorosos, aberturas de caminho, trabalhos de separação. Principalmente separação e amarração amorosa”, diz.

Embora classifique a religião que segue como “umbanda independente”, o nome não é reconhecido pela Associação Umbandista e Espiritualista do Estado de São Paulo (Aueesp).

Ao g1, o babalaô Ronaldo Antônio Linares, presidente da federação umbandista do Grande ABC, mantenedora do Santuário Nacional da Umbanda, diz que “não existem diferentes umbandas”,

“A Umbanda foi criada em 1908 por Zélio Fernandino de Moraes. É uma religião espírita voltada para a prática do bem e da caridade. Nós não entendemos por que razão chamam de umbanda a uma prática que nós não podemos reconhecer como tal. Não existem diferentes umbandas. Umbanda é uma só para todo mundo, então não há razão nenhuma de ser, de chamarem essa prática espúria de umbanda, dependente ou não dependente, não existe isso.”

O decano da Aueesp defende o uso da expressão umbanda “simplesmente para determinar uma religião que nasceu sob o espírito da igualdade, da prática da igualdade”.

“O caboclo das sete encruzilhadas que criou a Umbanda foi bem claro quando disse numa mesa kardecista, por que é que vocês não recebem aqui espíritos de pessoas que não foram importantes? Foi a procura pela igualdade, mas essa igualdade não significa a deturpação, isso pode ser qualquer coisa, só por favor não chamem isso de umbanda”, completou.

Membro do Conselho Religioso da Associação das Comunidades Tradicionais de Matriz Africana de Campinas e Região (Armac), João Galerani reconheceu que há uma diversidade grande uma vez que não há um órgão regulador.

“A umbanda, diferente de outras religiões, não tem um livro sagrado ou uma bíblia. Temos várias vertentes que seguem sua ritualística com as bases da umbanda, principalmente a caridade e não cobrança nos atendimentos. Também não temos um órgão regulador, então a diversidade é muito grande.”

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Carlos Sodario

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